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Chica mal acabada

 
Hospital e capela primitivos da Santa Casa de Misericórdia. No pátio, num pequeno pavilhão isolado, ficavam os loucos recolhidos à benemérita instituição
 

Era tal o ciúme daquela criatura que, todos os domingos, na igreja, ao invés de ouvir atentamente a missa, metia um espelhinho no livro de orações e, fingindo que rezava, punha-se a espionar, de baixo, o amante, que tocava violino no côro.

Chamava-se Francisca das Dores, mas só era conhecida pela alcunha de Chica Mal-Acabada, tal o seu físico de anã e as suas feições grosseiras de botocuda.

Certa vez, uma companheira a surpreendeu no templo com os olhos fincados no espelho. Compreendendo tudo, advertiu-a à saída que aquilo era um enorme pecado. Deus podia castigá-la. Chica Mal-Acabada riu-se. Qual! Não aconteceria nada!

Um domingo, estava ela, como sempre, a olhar o amante pelo espelho, quando viu lá dentro qualquer coisa medonha, indescritível.

Soltou um grande grito que alarmou os fiéis, e rolou ao chão, desmaiada. Levaram-na para casa, ainda sem sentidos. Quando voltou a si, não teve mais uma hora de sossego: a visão diabólica perseguia-a já fora do espelho, por toda parte. Recolheram-na ao pavilhão dos loucos da Santa Casa de Misericórdia, num estado comovente. Estava, às vezes, calma, conversando com uma amiga quando, de repente, tapava os olhos com as mãos e se punha a gritar de um modo arrepiante:

É ele! É ele! É ele!... E rolava por terra, numa crise tremenda, espumando, mordendo-se e batendo a cabeça contra o assoalho, despedaçando o vestido... Depois, passado o acesso, caía num profundo estado de prostração, deitava-se e dormia logo.

A noite, as crises redobravam de intensidade. A horas mortas, todos dormiam, quando os gritos desesperados de "É ele! É ele! É ele!..." despertavam e punham em sobressalto os doentes, irmãs de caridade e empregados da pia instituição. Os guardas então seguravam-na fortemente, a fim de evitar que ela cometesse desatinos. Fórmulas e mais fórmulas que os médicos receitavam, benzeduras de padres levados pelas amigas, amuletos de feiticeiros que o amante lhe colocava ao pescoço, de nada valiam: cada vez piorava mais. Três meses depois, era quase um cadáver. Foi nesse estado, de extrema fraqueza, que uma pneumonia a surpreendeu. O seu último dia foi horrendo, impressionante. Ela jazia no leito, sob uma febre violentíssima, quando lhe veio a derradeira crise. Antes mesmo que tivessem tempo de contê-la, saltou da cama aos costumeiros gritos de "E ele! É ele! É ele!..." e, em segundos, meteu furiosamente os dedos pelas órbitas, arrancou o olho direito, em seguida o esquerdo, e os espremeu nas mãos ensangüentadas, dando gargalhadas sinistras, numa volúpia sinistra. Depois, caiu por terra, arquejando com aqueles fundos buracos no rosto, jorrando sangue, a boca a escorrer espuma e baba...

Quando a levantaram, estava morta. 

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