ATENÇÃO: Este site não é atualizado desde 2012 e não há previsões de retorno..

O SACRÍLEGO

 

A majestosa Igreja de São Francisco de Assis, um dos mais belos templos do Brasil, verdadeiro poema em pedra

Meia-noite já havia soado, quando um desconhecido bateu à porta da casa de padre Antônio, lá para as bandas do Tijuco.

Vinha buscá-lo. Para que? Só a ele poderia dizer. Via-se estampada no semblante do misterioso indivíduo uma aflição imensa. Despertaram o prestimoso sacerdote, que não tardou a ir ao encontro de quem o procurava.

- Desculpe incomodá-lo, senhor reverendo, mas é tão necessária a sua intervenção!... Trata-se de salvar uma alma. Não podia deixar para amanhã.

- Ora, meu filho, nada tenho que desculpar. Eu me sinto verdadeiramente feliz quando posso socorrer os que precisam de mim. Confissão? Extrema-unção? Onde?

- Igreja de São Francisco de Assis.

Padre Antônio ficou perplexo, sem atinar... Fazer o que, num templo, aquela hora?

O outro, compreendendo a estranheza, esclareceu:

- Imagine que um pobre pecador comungou sem que se houvesse confessado, momentos antes de morrer. Venho aqui pedir-lhe a grande esmola de retirar a hóstia da boca do cadáver.

- Mas já deve ter-se delido...

- Não. Afianço-lhe que não.

Padre Antônio pensou na intervenção divina.

- Está bem! Vestiu-se, tomou o breviário, colocou o chapéu na cabeça e pôs-se a caminho, acompanhado do desconhecido.

O bom religioso não sabia explicar a causa, mas sentia qualquer coisa de anormal, uma certa inquietação de espírito, que lhe provocava arrepios, de quando em quando...

Um quarto de hora depois, defrontavam a igreja: estava aberta e toda iluminada, como em dia de festa. Entraram. Nenhum vivente. Bem ao centro da nave, sobre a essa, um caixão pobre, coberto de chita preta, ordinária sem dourados. Caminharam para ele. Padre Antônio levantou-lhe a tampa, descobriu o rosto do defunto, abriu-lhe, a custo, a boca fria e rígida, e extraiu-lhe a hóstia. O desconhecido tinha razão: não se dissolvera, estava perfeita. Depois de guardá-la no altar-mor e rezar por alma do morto, diante do caixão cada vez mais impressionado, o piedoso sacerdote voltou para casa.

Só na rua, refletiu que não vira o sacristão nem à entrada nem à saída da igreja. Parou, intrigado, e volveu o olhar em direção ao templo: estava fechado e as luzes apagadas. Achou tudo aquilo fantástico, desconcertante... E pôs-se a caminho, de novo, quando ouviu alguém chamá-lo. Era o desconhecido. Esquecera-se de agradecer-lhe.

Até ali, Padre Antônio não havia reparado nas suas feições, mas agora, depois que ele lhe estendera as mãos frias, horrivelmente frias, num aperto angustioso, notou que aquela fisionomia não lhe era estranha. Ele já vira alguém com aqueles mesmos cabelos empastados, aqueles olhos amortecidos, aquela boca repuxada e sem cor... Onde? Quando? Aquele rosto... Ah! - lembrou-se - e quase desmaiou, num pavor; num arrepio de morte: o homem que o fora chamar, o que estava ali à sua frente, não era outro senão o que jazia, momentos antes, dentro do caixão - o defunto!...

E Padre Antônio, antes mesmo de voltar a si de seu grande assombro, viu o estranho indivíduo empalidecer ainda mais, tornar-se de súbito vaporoso e desfazer-se, em poucos instantes, como a fumaça ao vento, na solidão da noite...

Pesquisar no site